A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA GUERRILHA DO ARAGUAIA

Como as forças armadas não queriam que a sociedade tivesse conhecimento sobre a guerrilha, não julgavam nem condenavam militantes pelo seu envolvimento. A ordem era não deixar sobreviventes entre os guerrilheiros. Um diálogo entre uma militante presa, Regilena da Silva Carvalho (Lena), e o general Antônio Bandeira, denuncia este procedimento:
- Ô, general, eu estou presa aqui, mas eu tenho uma família e preciso de um advogado não é justo o preso ter um advogado?
Ele respondia:
- Mas nós não vamos processar ninguém. Esse movimento não existe. Isso é um limbo na sua vida. Se a gente processar, ele passa a existir e confirma a existência da guerrilha.
Mineira de Pedralva, Regilena nasceu em 09 de janeiro de 1947. Tinha 24 anos
quando foi morar na região sul do Pará, onde ficou um ano e três meses se preparando para guerrilha. Porém, em meados de 1972, durante a primeira campanha, decidiu abandonar a luta, fato que lhe rendeu severas críticas e acusações por parte do partido. Antes de ir para a região escolhida para a preparação da guerrilha, os militantes eram informados de que aquele era um caminho sem volta, ou seja, teriam que permanecer na luta até o final, ainda que sob condições adversas.
Lena morava na localidade de Pau Preto com o marido Jaime Lúcio Petit – morto no Araguaia –, que já era militante do PC do B e a recrutou para organização em 1969.
Dois anos depois, foram morar na região escolhida pelo partido para o desenvolvimento da guerrilha rural, integrando-se ao destacamento C. Sua decisão de aceitar a proposta foi fortemente influenciada pelo companheiro.
Eu acreditei na proposta pelo entusiasmo dele, que era muito grande. Não tinha argumentos contrários do ponto de vista político ou teórico. (...) Acreditei no caminho da luta armada. Isso era muito claro. (...) É evidente que o fato de ele ser meu marido pesou muito, foi fundamental. Um outro homem talvez não tivesse a influência que ele teve. Então eu fui. Com um enorme entusiasmo. (...) O entusiasmo prevalecia sobre as dúvidas.
O fato de ter se casado há pouco tempo (em 1968) e não querer se separar do marido pode ter pesado mais do que a convicção política de Regilena. Como a opção pela luta armada partia de um elemento externo e não de uma escolha individual, no momento em que os embates se iniciaram e alguns companheiros começaram a morrer, Lena decidiu que abandonaria a luta. “A partir da morte da Maria Lúcia eu perdi um pouco o rumo. Cazuza e Mundico estavam com ela. Eu ouvi tiros a dois ou três quilômetros, de manhã cedo”.
De acordo com Campos Filho, morreram 64 militantes91. Maria Lúcia Petit da Silva (Maria), cunhada de Regilena, foi a primeira mulher morta do destacamento C, fato que levou Lena a se entregar alguns dias depois. “A última vez em que Lena esteve com os guerrilheiros do destacamento C foi no dia 19 de julho de 1972, na grota do Zé Pereira.
Estavam presentes Paulo, Jaime, Mundico, Áurea e Josias.
Ela não quis se entregar diretamente às forças armadas, pois teve receios do tratamento que poderia receber. Assim, foi à casa de um morador conhecido (Manoel), que procurou o Exército, informando sobre sua rendição.93 Quando o helicóptero chegou para levá-la à prisão, hesitou e tentou fugir, mas acabou voltando e se rendeu.
Antes, ao chegar no local, dona Valdo, esposa de Manoel, fez um pedido: Se entregue, dona Lena. A Maria já morreu. Isso não é vida para vocês. Eles são muito fortes. Estão dizendo aí, nos alto-falantes, que não vão judiar de quem se entregar. A senhora se entrega e eu garanto que não vão lhe tocar um dedo”. A promessa dos militares era uma armadilha. Influenciados pelo discurso de que se colaborassem sairiam do conflito com vida, guerrilheiros que se entregaram foram torturados e executados.
Lena foi levada a Brasília, onde teve um tratamento singular. Afirma que só apanhou no primeiro dia de interrogatório e acredita que não passou por outros tipos de tortura porque não era “uma figura importante no Partido”.
Durante o período que esteve na prisão, até dezembro de 1972, acompanhou a queda de seus companheiros do Araguaia. As informações eram dadas pelo general Antônio Bandeira, com quem conversava constantemente. Ele chegou inclusive a lhe pedir que escrevesse uma carta aos guerrilheiros, estimulando-os a se entregarem. Ela escreveu, assim como também o fizeram José Genoíno e Luzia Reis.
A participação na guerrilha e os fatos decorrentes dessa experiência marcaram profundamente a vida de Regilena. “Eu fiquei muito ruim da cabeça. Você perde a referência. Quando eu saí de lá eu não sabia o que eu ia fazer. Não dá pra saber. Eu fiquei anos assim. Até que eu fiz um tratamento psicanalítico”.96
Mesmo optando por abandonar a luta, por não mais acreditar que a guerrilha ia alcançar seus propósitos, a ex-militante não deixou de nutrir respeito e admiração pelos combatentes que permaneceram no Araguaia.
Ao mesmo tempo em que eu não quis aquilo lá, eu acho que eles eram bastante determinados. Tenho um respeito, um carinho por eles, como se estivesse sendo hoje. A coisa mais viva da minha vida é a lembrança deles, e a lembrança deles é agora. Eu lembro gestos, olhares, como se não tivessem morrido. Foi uma coisa que me marcou muito.
Luzia Reis Ribeiro (Lúcia ou Baianinha) também foi para o Araguaia. Chegou lá em janeiro de 1972, quando tinha 23 anos. Viajou com Maria Célia Corrêa e Tobias Barreto, ambos acompanhados por Paulo Rodrigues. Natural de Jequié (BA), formou, em meados da década de 1960, um grupo de estudos para discutir diversos assuntos, entre eles marxismo e política. Dinaelza Santana Coqueiro e Vandick Reidnei Pereira Coqueiro – casal de guerrilheiros mortos no Araguaia – faziam parte do grupo. Os três ingressaram no ensino superior em 1969; Dinaelza no curso de Geografia, Vandick no de Economia e Luzia em Ciências Sociais, espaço onde exerceu uma militância política que havia iniciado um ano antes.
 Minha história começou no movimento estudantil, em 1968. (...) fui estudar em Salvador e participei do movimento em 1968 contra a ditadura militar e contra as reformas universitárias. Eu era atuante do grêmio da minha escola. Posteriormente, fiz Ciências Sociais, que não cheguei a concluir porque fui perseguida por ser do diretório e entrei para o PC do B.
O fato de ter que viver na clandestinidade, não podendo estudar, trabalhar, nem morar com a família, foi um dos motivos que levaram Luzia a ir para o campo e desenvolver um trabalho político junto àquela população. Antes da viagem, tinha conhecimento de que o projeto do PC do B era desencadear uma guerra popular; só não sabia que seria de imediato, como ocorreu, porque a preparação para guerrilha tinha sido descoberta pelos órgãos da repressão.
Sobre a vida na região e as atividades desenvolvidas, ela conta:
Lá a vida era muito amiga. A gente fazia roça, caçava, ninguém passava fome no período antes da guerra. Eu estava aprendendo a me adaptar. Dormíamos em rede, cantávamos músicas de Noel Rosa de noite. (...) Iam os compadres e as comadres todas para lá. A gente ficava no escuro que não tinha luz elétrica, só a luz da lua.
Luzia fez muitas amizades no Araguaia. Ficou mais próxima de Bergson Gurjão, que ensinava a fazer depósitos na mata, de Áurea Elisa e Dinalva Teixeira, com quem trocava confidências e por quem possuía grande admiração.
Lúcia codinome utilizado por Luzia no Araguaia teve muita dificuldade de adaptação. Pequena e sem experiência em atividades físicas, criava artimanhas para cumprir as tarefas. Ficou responsável pelo suprimento de lenha do acampamento. Cortar madeira servia de exercício para carregar fuzil e transportar companheiro ferido. Sem disposição para trabalhar com o machado, a baianinha catava a lenha solta no mato. Paulo[comandante do destacamento C] empenhava-se em mostrar para Lúcia a importância dos treinamentos. (...) Mesmo depois de algum tempo, ainda sofria repreensões pelos descuidos.
O tempo de permanência desta militante na região foi curto. Ficou apenas cinco meses, até se perder de seus companheiros ao fugir de uma emboscada montada para pegálos.
Foi procurar ajuda de um morador (Raimundo), pedindo que entrasse em contato com Pedro Onça, indivíduo da confiança dos guerrilheiros, para que ele a levasse ao encontro dos paulistas. Raimundo não avisou Pedro Onça como havia combinado com Lúcia, e sim ao Exército. Mais uma guerrilheira era presa por delação de moradores.
A prisão foi efetuada em junho de 1972 por um grupo de jovens soldados que, segundo ela, pareciam recrutas. A violência começou quando foi entregue aos oficiais na base de Xambioá, onde foi barbaramente torturada.
(...) tomei choque elétrico, tiraram minha roupa, me botaram num círculo de mais de 30 homens, me jogavam de um para o outro. Eu desmaiei, perdi os sentidos. Recordava os sentidos dentro da água, eles me afogando. Depois me botaram num buraco a noite toda com frio, nua dentro de um buraco que era a prisão.

Posteriormente, foi levada para o Pelotão de Investigação Criminal (PIC) da 3ª Brigada, em Brasília, onde também foi torturada pela equipe de Antônio Bandeira. Após alguns meses, foi solta por não haver processos anteriores contra ela. Nas declarações prestadas à Polícia Federal da Bahia102, Luzia dá informações sobre sua militância e sobre a preparação para guerrilha. No mesmo documento, dá graças a Deus por ter sido presa e acredita ter contribuído para esclarecer os fatos sobre o trabalho que estava sendo desenvolvido no Araguaia. Neste caso, há que se considerar que as informações não foram dadas espontaneamente, mas sim sob circunstâncias adversas.
Após ser solta, a ex-guerrilheira foi morar com os pais em Jequié. Passou por tratamentos médico e psicológico para se recuperar dos traumas da tortura: “Foram 30 anos trabalhando minha mente, minhas emoções. Levei anos para me recuperar”.
No que se refere à reintegração na vida social, afirma que se sente, em alguns momentos, marginalizada por sua atuação política. Casou e se separou duas vezes, teve um filho, voltou a trabalhar no Banco do Estado da Bahia e se formou em Ciências Econômicas. Fazendo um balanço sobre a experiência da guerrilha, diz:
Éramos idealistas e românticos, daí enfrentarmos metralhadoras com espingarda 20, na sua maioria. Era o sonho de uma sociedade mais justa. Nossa juventude tentou abrir a sociedade, porque não havia liberdade de expressão, tudo era censurado. (...) Ver a Guerrilha do Araguaia isolada pode parecer um monte de dealistas e loucos. Não é por aí. Porque a partir dali abriram caminho, ou não
abriram?
Luzia, que atualmente não é filiada a nenhum partido político e se diz pacifista, acredita que se o país passou por um processo de redemocratização e hoje temos no governo um presidente com uma trajetória de atuação nos movimentos sociais, parte dessas conquistas deve ser creditada aos que lutaram contra a ditadura, almejando uma sociedade mais justa e aberta, na qual as pessoas pudessem ter espaços para intervir e atuar.
As primeiras mulheres que chegaram ao Araguaia para se integrar aos destacamentos guerrilheiros, despertaram discussões e preocupações entre os companheiros que já estavam no local. Havia dúvidas sobre a capacidade destas militantes se adaptarem ao ritmo de vida e de trabalho local. Criméia Alice Schmidt de Almeida (Alice), que foi uma das primeiras militantes enviadas pelo PC do B ao sul do Pará, enfrentou essa situação de desconfiança.
Durante a viagem, acompanhada por João Amazonas (tio Cid), foi advertida sobre sua atuação. A incorporação de outras mulheres na preparação e no desenvolvimento da guerrilha dependeria do seu desempenho. Ela reagiu à pressão, questionando: “Por que você cobra isso das mulheres? (...) Se o primeiro homem a chegar aqui não desse certo não haveria guerrilha?”106 Ao aceitar o desafio, ela abriu caminho para que outras militantes atuassem na luta.
Natural de Santos (SP), Criméia Alice tinha 23 anos quando foi para o Araguaia, em 1969, integrando-se ao Destacamento A. Antes, havia atuado no movimento estudantil e chegou a ser presa no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna. Cursou Enfermagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro e, quando optou por viver no campo, já estava sendo procurada por agentes da repressão.
Na região, Alice conheceu André Grabois (Zé Carlos) e passou a viver com ele, sem saber do parentesco entre o namorado e o comandante militar da guerrilha, Maurício Grabois.
Em meio aos combates da 1ª campanha, Alice engravidou, fato que se tornou um dilema. Se ficasse, chegaria a um ponto que não conseguiria atuar na guerrilha, podendo colocá-la em risco. Se tentasse sair da região para ter o filho, poderia ser descoberta, presa e torturada. Diante das incertezas, escolheu a segunda opção.
A guerrilheira se despediu de Zé Carlos e dos companheiros no dia 25 de agosto [de 1972]. Saiu da mata acompanhada por Zezinho, o Michéas, militante treinado em Pequim que se tornara exímio mateiro e, muitas vezes, recebeu a tarefa de retirar comunistas da região dos combates.
Os guerrilheiros conseguiram sair da região e ela voltou para São Paulo, onde passou a viver clandestinamente. Foi morar com sua irmã, o cunhado – também integrante do PC do B – e dois sobrinhos. Após um encontro com Carlos Danielli, um dos dirigentes do partido que fora preso com o cunhado e a irmã de Alice, os agentes do Destacamento de Operações Internas (DOI) conseguiram prendê-la.
Na prisão, viu fotos de guerrilheiros mortos e de Danielli torturado. Seu depoimento ficou registrado no Centro de Operações e Defesa Interna, com data de 31 de janeiro de 1973.109 No interrogatório, relatou sua trajetória no movimento estudantil e sua participação na guerrilha, porém, as informações dadas sobre o Araguaia, apesar de procederem, eram bastante imprecisas.
Após sair da prisão, Criméia continuou militando, o que fez com que fosse novamente presa na década de 1970. Depois casou e se separou três vezes, tendo dois filhos. Formou-se médica sanitarista, exercendo este trabalho na Baixada Fluminense.
Ser torturada e chegar a uma situação-limite, em que a pessoa não mais suporta e dá as informações que o torturador deseja obter, deixa marcas profundas. Criméia fez terapia, assim como as outras duas ex-militantes citadas anteriormente, para conseguir lidar melhor com os sentimentos gerados por esta experiência.
Os militantes políticos que foram torturados enfrentaram outros conflitos, além daqueles vividos nos campos de combate. Num primeiro momento, foram obrigados a falar por meio da violência e depois, com o fim do regime militar, foram, de certa forma, coagidos a esquecer o que havia acontecido, a manter silêncio para não se confrontar com um discurso que os apontaria como rancorosos e ressentidos se ousassem trazer o tema a debate. É como se esse passado recente tivesse que ser ocultado por ser incompatível com a proposta de um progresso, de um futuro que, para ocorrer, não deve se prender às mazelas do passado.
Cabe repetir que, dos 64 militantes mortos na guerrilha do Araguaia, 12 eram mulheres, o que corresponde a 18,75% da força de combate à ditadura naquele episódio.
Algumas morreram nos confrontos, outras executadas após serem presas.
Glênio Sá, um dos militantes que sobreviveram à guerrilha, enfatiza a solidariedade, a força e a coragem das “camaradas” naquele contexto.
Abro um parêntese aqui para destacar a atuação das nossas camaradas, tanto na preparação como na fase de luta. Elas tinham cumprido bem a dupla tarefa de superar a formação machista que haviam recebido anteriormente e vencer os preconceitos existentes na sociedade. Não havia diferença de sexo entre a gente quando se tratava de uma tarefa. Participaram do trabalho na roça, no castanhal, na caça, na pesca e nos treinamentos militares. Fosse no carregamento de peso, numa corrida a dois, no salto, no tiro ao alvo, diversas vezes elas nos superaram.
Quando, em 1971, foi anunciada a chegada da primeira militante no destacamento B, ao qual Glênio pertencia, o comandante Osvaldão teve dúvidas quanto à adaptação dela àquele ritmo de vida. Mas Suely Yumiko Kanayama provou o contrário.
Suely (codinome Chica) era descendente de japoneses. Paulista de Coronel Macedo, nasceu em 25 de maio de 1948. Tinha 23 anos quando foi para o Araguaia, no início de 1971, estabelecendo-se na região da Gameleira.
Antes, em 1967, havia ingressado no curso de Letras da Universidade de São Paulo, atuando no movimento estudantil. Na medida em que algumas lideranças passavam para a clandestinidade, outras surgiam. Assim, Suely iniciou sua militância. Glênio, que conviveu com ela no destacamento, conta que Chica realizava com destreza as atividades a ela destinadas, principalmente o trabalho na roça. “A Sueli nos ajudou muito na limpeza dos pés de milho e eles cresciam fortes e com espigas cheias, dando um novo visual à nossa roça”.
Suely era filha única, professora e deixou a vida na cidade para ir exercer sua militância no Araguaia. Foi assistente da Comissão Médica da guerrilha, junto da enfermeira Luiza Augusta Garlipe (Tuca). Nunca tinha saído de casa e também não tinha experiência com a vida no campo. Mesmo assim, sua adaptação foi boa, como relata Genoíno: “Ao chegar lá ficamos preocupados com a sua fase de adaptação, mas foi uma surpresa para todo mundo: ela se integrou com as mulheres da região e facilitou em muito o nosso trabalho”.
Ela foi morta em 1974, durante a última fase da luta, num confronto com as tropas do Exército na mata. Estava muito ferida quando um soldado se aproximou, não se sabe se para socorrê-la e levá-la para prisão ou se para executá-la. Reagiu, sacando a arma e atirando nele. Os outros militares ficaram revoltados e descarregaram as armas na guerrilheira, que ficou com o corpo deformado por ter levado mais de 100 tiros. Portela comenta que os próprios militares ficaram chocados quando receberam o corpo na base de Xambioá. Ao ser questionado sobre guerrilheiras que se destacaram nos combates, um oficial que participou da guerrilha conta:
(...) Tinha uma japonesa também que era bastante audaciosa. Teve uma morte muito violenta, ela recebeu mais de 100 tiros. Houve um encontro com o pessoal do Exército, houve muita troca de tiro e ela... Eu vi quando o corpo dela chegou... estava uma peneira, mas era uma peneira mesmo, coitada.
Sobre as circunstâncias da morte de Suely, o Relatório do Ministério da Aeronáutica informa que a mulher, “cercada pelas forças de segurança, foi morta ao recusar sua rendição”.
Pedro Corrêa Cabral também dá informações sobre a guerrilheira, ao comentar como foi realizada a Operação Limpeza em 1975.
Suely havia sido morta no final de 1974. Seu corpo estava enterrado num local chamado Bacabá, onde, sob a coordenação do Centro de Informações do Exército - CIEX, foram construídas celas e se interrogavam os prisioneiros. Durante a operação limpeza, sua cova foi aberta e o corpo de Suely desenterrado. Intacto, sem roupa, a pele muito branca não apresentava nenhum sinal de decomposição, apenas marcas de bala.
Outra militante que se tornou guerrilheira foi Maria Célia Corrêa (Rosa). Nascida no Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1945. Trabalhava como bancária nesta cidade, onde também estudava Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro)120. Foi para o Araguaia em 1971, quando tinha 26 anos. Lá encontrou com o irmão, Elmo Corrêa (Lourival), e com a cunhada, Telma Regina Cordeiro Corrêa (Lia), ambos mortos na guerrilha. O casal fazia parte do Destacamento B, o mesmo de Suely, e Rosa se integrou ao Destacamento A junto com seu companheiro, João Carlos Campos Wineski (Paulo Paquetá).
Posteriormente, em 1973, Paulo desertou da guerrilha, retornou aos estudos e se formou em Medicina. Rosa ficou no Araguaia até a última fase da luta, quando foi presa e assassinada em 1974.121 A prisão de Rosa faz parte de mais uma história de delação de moradores, neste caso, de Manoelzinho, na época conhecido como Manoelzinho das Duas por conviver com duas mulheres simultaneamente. No início de janeiro, Rosa e o grupo com o qual estava – Pedro Carretel (Carretel), Nelson Lima Piauhy Dourado (Nelito), Luiz René Silveira e Silva (Duda) e Jana Moroni Barroso (Cristina) – foram surpreendidos com tiros pelos militares, após apanharem alguns legumes numa roça, perto do local em que se encontravam. O barulho feito pelo grupo ao se deslocar com o alimento despertou a atenção dos militares.
No confronto, Nelito, que comandava o grupo, foi morto. Carretel foi preso. Duda e Cristina conseguiram escapar e Rosa se perdeu dos companheiros. Ao pedir ajuda para Manoelzinho, foi advertida a se entregar, ao que respondeu: “Prefiro morrer do que me entregar”.122 Mas foi rendida por Manoelzinho, com a ajuda de um outro homem123, e entregue aos militares. Uma moradora da região, dona Maria da Metade, presenciou a cena e relatou:
Vinha dois homens com a Rosinha amarrada.(...) E ela toda trapiazinha, a roupa toda rasgada. (...) Ela tava comendo até peixe cru que lá na quitanda tinha, e deram bolacha pra ela e aí ela queria fazer xixi e foi pra detrás da casa. Nós fomos com ela porque os guias não queriam confiar... E nós fomos com ela e ela pedindo a nós que rezasse pra ela não ser morta, pra não matarem ela. (...) Ela não tava desesperada não, tava calma, rindo e tudo mais. Só tava assim, mal trapilha demais.
Outras pessoas que moravam na região também viram Rosa viva, muito debilitada, suja e magra, num carro próximo à cadeia de São Domingos. Em seguida, ela foi levada para a base de Bacaba, a mais temida, onde ficou algum tempo, até ser executada. De nada adiantara o seu pedido de reza aos moradores.
Manuel Leal Lima, o Vanu, mateiro de 35 anos, contou que estava à margem de um igarapé quando um helicóptero aterrissou trazendo três presos. Tinham os olhos vendados. Um oficial mandou que andassem cinco passos. Metralharam-nos. Foi horroroso. As cabeças dos guerrilheiros ficaram totalmente destruídas. Um deles era Rosa
Maria Célia foi morta de uma forma covarde, mas foi a coragem, sua convicção política e a crença de que era preciso lutar, mesmo correndo o risco de morrer pela causa que defendia, que marcaram a trajetória da Rosa guerrilheira. Uma moradora do Araguaia, preocupada com sua segurança, disse a ela certa vez:
Rosinha, se eu pudesse, te enterrava no chão da minha casa, deixava só sua boquinha para fora para te dar comida, só para esse povo (militares) não te matar.
E ela respondia: Não fique triste, estamos aqui para isso mesmo, é para lutar e morrer também.
Na medida em que o tempo ia passando, o número de guerrilheiros mortos aumentava consideravelmente. Era a última campanha (de outubro de 1973 até fins de 1974) e o fim da guerrilha se aproximava, para o desgosto do PC do B, que havia apostado na possibilidade de vitória da guerrilha, e satisfação das forças armadas por acabar com o “foco subversivo” na região sul do Pará. A ordem de eliminar os prisioneiros após os interrogatórios foi sumariamente cumprida com uma série de covardes fuzilamentos.
Walquíria foi a última guerrilheira do Araguaia a ser morta pelas forças da repressão. Segundo relatório da Marinha, teria morrido em 25 de outubro de 1974.
Natural de Uberaba (MG), Walquíria Afonso Costa nasceu em 02 de agosto de 1947. Foi para o Araguaia no início de 1971, fugindo das perseguições políticas que a impediam de exercer sua militância nas cidades. Tinha 24 anos quando chegou na região da guerrilha, acompanhada por seu marido, Idalísio Soares Aranha Filho (Aparício). Ambos pertenciam ao Destacamento B.
Antes de ir para o sul do Pará, Walquíria (Walk, como era conhecida na região), fez o Curso Normal, formando-se professora em 1965. Deu aulas em Pirapora e posteriormente em Belo Horizonte, quando ingressou no curso de Pedagogia da Universidade Federal de Minas Gerais. Engajou-se nas lutas do movimento estudantil, sendo vice-presidente do Diretório Acadêmico, o que fez com que fosse procurada pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para prestar esclarecimentos sobre sua atuação na entidade estudantil.
Nessa época, Walquíria gostava muito de cantar e tocar violão. Participou junto com outros colegas da fundação do Diretório Acadêmico da Faculdade de Educação, em 1968. Lutavam pela defesa de interesses estudantis e buscavam o caminho para solução de questões mais concretas como: cortes de verbas, acordo MEC-USAID, fechamento de restaurantes universitários, Decreto-Lei 477, etc.
Quando foi procurada pelos agentes da repressão, já havia ido para o Araguaia.
Ainda assim, foi julgada à revelia pela Auditoria da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, sendo absolvida por falta de provas.
De acordo com as informações prestadas pelo ex-recruta Adaílton Vieira Bezerra, em entrevista à Folha de S. Paulo, Walquíria foi capturada por camponeses que receberam como recompensa uma quantia de cinco mil cruzeiros por tê-la entregado.
Quando chegou à Base de Xambioá, estava bastante debilitada. Foi examinada e medicada com um coquetel de remédios para desintoxicação e fortalecimento. Foi Adaílton (codinome Paulo) quem lhe aplicou a injeção. Depois foi interrogada pelo general Hugo Abreu, mas se recusou a responder qualquer pergunta: “Ela ignorava completamente as perguntas”.
Walquíria ficou apenas um dia na prisão. As únicas palavras ditas por ela neste período, segundo o então recruta, foram: “Me soltem e me entreguem essa arma que acabo com meio mundo”. A guerrilheira não chegou a ser torturada, como a maioria dos outros presos. Na prisão, tomou banho e recebeu roupas limpas. Pela sua fala, podemos perceber que, até os últimos momentos de sua vida, manteve a convicção política de que era preciso nlutar, de armas na mão, para conseguir mudanças concretas na sociedade.
No dia seguinte à prisão de Walquíria, os soldados que se encontravam na base foram todos liberados. A execução da última guerrilheira já estava programada, como relata Adaílton:
(...) por volta das 15 h, liberaram todo mundo para a cidade, inclusive eu. Só ficaram oficiais, chamados de doutor. Chegaram também os comandantes de outras bases, como Bacabá e Casa Azul. Fiquei sabendo que eles formaram uma meia-lua, colocaram ela no centro, e um carrasco, de costas para a meia-lua, atirou nela. (...) Ela recebeu mais dois tiros. No segundo, caiu de joelho. No terceiro, caiu de cara no chão.
Na mesma reportagem, consta a informação de que quando os soldados foram liberados, a cova de Walquíria já estava aberta. A guerrilheira foi enterrada na base de Xambioá, ao lado do lugar onde havia sido enterrado Osvaldo Orlando Costa (Osvaldão), militante que se tornou um ícone da guerrilha por sua marcante atuação.
Ao narrar um pouco da participação de algumas mulheres guerrilheiras do Araguaia, destacando partes de suas trajetórias, podemos perceber aspectos do cotidiano dessa luta e observar como foram estabelecidas relações entre militantes, moradores da região e militares. O fato de serem mulheres não as impediu de se engajar num projeto coletivo de luta, acreditando que era viável e necessário naquele momento. A atuação delas no movimento armado contra a ditadura representou também a inserção da mulher brasileira num espaço até então dominado pelos homens.
Algumas desistiram da luta, deixaram de acreditar em seus propósitos e assim exerceram sua liberdade de escolha – um dos direitos pelos quais lutavam. Outras ficaram no Araguaia e combateram até a morte. Mas todas, com armas ou não, mostraram que eram capazes de combater ao lado dos homens e de morrer por um ideal que transcendeu questões de gênero. “Foi importante sentir o engajamento da mulher no mesmo nível do homem, e observar que a diferença seria eliminada a partir do próprio homem ao confiar na capacidade da mulher, e da própria mulher demonstrando a sua força política, física e militar”.
Homens ou mulheres, os militantes e guerrilheiros que se encontravam no Araguaia em 1972 “eram, em sua maioria, jovens”, salienta Romualdo Pessoa, afirmando que eles “tinham em comum o fato de serem todos membros do mesmo partido e estarem com suas vidas marcadas pela repressão levada a cabo nas grandes cidades contra todos os que se opunham ao regime militar”.
Das mulheres que foram para o Araguaia até 1972 e que eram militantes do PC do B, 12 foram mortas. Quatro conseguiram sair da região com vida.138 Pode ser que mais algumas tenham se incorporado à guerrilha, mas as fontes consultadas não oferecem informações neste sentido. Há registros da atuação de 16 mulheres na guerrilha rural, estruturada pelo Partido Comunista do Brasil. Com exceção de Elza Monnerat, que já tinha 54 anos quando foi para o Araguaia, em 1967139, as militantes que foram para a região tinham em média 24 anos quando trocaram a vida nas cidades pela preparação para a luta armada no campo. Fazendo um cruzamento de dados obtidos na pesquisa, verifica-se que, dentre as combatentes do Araguaia, onze eram estudantes universitárias (68,75%), duas eram funcionárias públicas (12,5%), duas possuíam formação superior (12,5%) e uma tinha concluído o 2º grau e trabalhava em serviços informais (6,25%). Os números demonstram que a maioria tinha passagens pelo movimento estudantil e que as discussões realizadas neste meio contribuíram significativamente para sua opção de se inserir no espaço público como personagens políticas, militantes partidárias e combatentes de guerrilha.
"Elza, codinome Maria, chegou ao Porto da Faveira, sul do Pará, no final de 1967. Junto com ela foram Maurício Grabois (Mário) e Líbero Giancarlo Castiglia (Joca). A militante saiu da região para fazer contatos com o partido em São Paulo e, ao voltar, deparou-se com a região cercada por militares. Conseguiu escapar, avisar João Amazonas, que também retornava à região, e voltar para São Paulo, onde viveu clandestinamente, até ser presa na “Chacina da Lapa” em 1976."